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Álvaro Santi - Músico - Escritor - Porto Alegre/RS

Poesias Publicadas

"Dança das Palavras" (IEL-RS, 1998) - Texto integral

Quero escrever
preciso escrever
quero escrever
preciso escrever
preciso escrever
preciso escrever
preciso escrever!
— isto foi um ponto de exclamação
qualquer semelhança com um cassetete
é uma puta dura
(ai!) coincidência


POEMA DIANTE DO ESPELHO SINCERO

És um burguês,
distantes prazeres do bicho,
distantes sintomas do instinto.
Não adianta fazer pose,
— Burguês!...
Aquele que deixa sempre
de fazer o que gosta
para fazer o que convém
e dá grana.
Um homem, abraçado
com seu medo de cair...

caindo.


PAISAGEM DE UM RIO NO TEMPO

Sentado no belvedere,
no horizonte miro a curva
do rio que, como eu, descansa.
Sei que a água agora é turva,
tinto sangue das barrancas.
Nem tanto assim a lembrança,
nem o sonho, nem o mito:
quem inventa nunca mente!

Por trás do meu belvedere,
na ciclovia asfaltada,
garotos andam de skate.
Mais além, na correnteza
do tempo, vejo sentado
meu avô com seu cigarro.
Da beira se ouve seu grito:
tanto peixe que só vendo!

Muito antes do belvedere,
um passageiro apressado
da “gasolina” me acena:
onde foi parar a pressa?
(O tempo é tão relativo...)
E a “gasolina” fantasma
passa sob duas modernas
pontes (uma, condenada).

Sonhando no belvedere,
não há idade, não há tempo:
sou e fui uma criança
que nunca mente — inventa!


O JOVEM POETA

para Carlos Eduardo

Não olhe agora, o poeta
desce as escadas que o trazem
ao nosso mundo banal.

Não se nota nada além
do terno brilho no olhar
— é que ele é jovem, ainda.

Queima, sim, a chama e arde
o peito. E não se questione
a noite em claro, as cabeças
em sintonia, discursos
belos, amigos que pensam.

Não duvidem dos amores
urgentes ou esquecidos,
dos abismos engendrando
vidas por todos os lados
— muitas vidas do poeta.

Se as vive entre nós ainda,
se não o consome a fome
do que é belo, o seu amor
do que morre a cada instante,
de curioso é que entre nós
um instante mais deseja...

Pra dizer, então, mais coisas,
com palavras que não morrem.


SONETO XII

(que alguém dedicaria a mim)

Amar-te, como a escarpada montanha
escalar, será duro, ou mesmo pior:
como o monótono passo que ganha
quem conhece seu caminho de cor.

E vens a mim, parceiro da surpresa
oculta num olhar puro, risonho:
decerto serei tua próxima presa,
ou tudo não será mais do que sonho?

Outra noite mais, dormir sobre ti
sem respostas: não te queixas do peso,
nem direi ao certo se estás aqui.

Amar-te, sem saber o que é melhor:
se conservar meu coração aceso,
ou chamar os bombeiros. Que calor!...


* * *

Eu bebo cada palavra
tua como se na malha
fosse um peixe, me envolvendo
cada fio como um desejo.

Nem me ocorre contestar-te,
pra não quebrar essa graça
que se espalha, quando falas,
quase até o planeta Marte.

Como se opera a magia
de eu me enxergar no teu olho?
Que outro espelho mostraria
o que não estava exposto?

De repente ressuscita
aquele menino tolo,
cujo olhar ainda brilha,
sobre o tempo, mais que ouro.

Das cicatrizes antigas,
nenhuma resta fechada:
tornaram a ser feridas,
ou flores desabrochadas?


* * *

Ao vestir as frases do vento
de cores vivas e outras mortas,
cobrindo com elas o muro
que encerra meus passos noturnos,
quis dar a teus olhos a chance
de ver luz do sol no concreto,
que só pode ser demolido
na tensa atenção da menina,
no beijo feliz da mulher
que te espero a cada momento.

Se, através do muro e das flores,
meus olhos procuram os teus,
contra toda distância e tempo,
sem a paz de alguma coragem,
que culpa terei, descontente,
que na terra não sei viver,
e no céu, jamais satisfeito,
‘inda mais estrelas invento,
porque entrevi a perfeição
no sonho do amor não vivido?


DESEJOS

I.
Quero
que o momento de ficarmos sendo
seja nosso melhor descanso,
consenso mudo entre os dois
quanto a tudo.

Contudo,
antes disso quero
extenuar a discórdia
levá-la até o ponto em que se dissolva
no encontro das metas opostas.

II.
Preciso de ti
como esta entidade metafísica
que se preste ao meu poema elástico

Também como corpo de verdade,
cura da doença imaginária.

E ainda como pessoa viva,
distinta de mim quanto possível,
sem fim em si mesma que não seja
o seu próprio vôo, que admiro
à distância.


* * *

O brilho de teus olhos me diz:
— Serei capaz? — esforço constante
de fazer triunfar tua vontade,
sobre cada pedra do caminho.

Sei que serias capaz
de me ensinar tua paciência,
e a coragem do trabalho,
se fosse coisa ensinável.

Como te ensinaria a sonhar
meus sonhos, se isto eu pudesse.
Mas que importa, se podemos
rir juntos ainda muitas vezes?

Porque teus olhos falam, também,
outras coisas que ensinar possíveis
um ao outro, surpreendendo
um ao outro a cada instante.


* * *

Hoje a dor de simplesmente
estar vivo se dissolve
em chamas frias que envolvem
a branca lua crescente
no horizonte; ou é quem sabe
o teu sorriso que nasce
em meio à noite, pendente
de fios dourados; ou são
estilhaços da paixão
que das nuvens onde moro
caem feito chuva de ouro
e te fecundam.

Pátria de meus sonhos, terra
encantada onde termina
a estrada que traço, sina
da palavra vaga que erra.
É como te prendo a mim:
última escolha, meu fim.
Volto a ti como da guerra,
não me lembro do teu rosto.
Mas é certo que te encontro,
mudo e perplexo, em busca
do que há de meu ou da cura
que há em ti.


ESPERAS

I.
De um porto todo florido
virás, da cidade úmida
banhada de sol, à tarde,
com muitas paredes brancas.

Trazendo contigo as nuvens
e o vento norte, trazendo
suave perfume de sal,
e uma ânsia mal contida.

Descobrirás este rio,
e verás que o ar se agita,
a chuva cai, e ele cresce.

Verás que aqui te esperava,
aldeia morta, à margem;
agora que já fui mar,
serei cais: atracarás.

Tua âncora, que hei sonhado,
presa ao chão enfim será
semente de uma cidade
toda branca e ensolarada.

E germinará em mim,
porto em flor, mais uma vez.


II.
Meia-noite, hora incerta:
imagino a sala deserta
em que tu estás, a blusa aberta
jaz sobre o gordo carpete,
o pardo-carmim dos teus sonhos,
e também dos lábios em oferta...

A quem darás teu ventre aflito
esta noite? Quem ouvirá teu grito,
quem verá hoje teu bonito
corpo, ardendo até às sete
da manhã? Ah, medonho
instante, que viver eu evito...

À mesa de cerejeira, o telefone cala,
e a bandeja é posta, na sala:
dois copos de cerveja, e uma mala.
Fácil ver, a quem reflete,
o que planejam os copos tristonhos,
e a garrafa que não fala.

Ah, desejo de ouvir outro sim,
que me consome, é certo, até o fim...
(“Por que a gente é assim?”)
Desejo de que em ti se complete
o poema que ora componho
com pedaços da nossa pele, ai de mim!


FLASHES

V.
Guardo tuas noites
para as minhas tardes
cheias de chuva
Oh desejo negado face a face
por que voltas a cada passo
e ainda por cima dizes:
- esquece!

VII.
Entre os lençóis,
perdi a metáfora
que ia usar
pra te dizer
que te amar
é como ser...


* * *

Divina boca em bela voz se alça
a me dizer, terrível, que meus olhos
já não são meus, e não são minhas, já
as minhas mãos.

Quedo, escuto esta sentença amarga
que outra vez me afirma quão frágeis são
e mentirosas essas pontes entre
olhos e mãos.

Fácil repisar o condor e as pétalas
de rosa, pois minha língua brilhante,
desembesta a falar, como se fosse
independente.

Enquanto a mente deseja atingir
desertas montanhas e meditar,
o nobre coração se vai lançar
no mais profundo
dos mundos.


PASSEIO IV

Quero misturar-me ao povo
que toma conta da praça!
Meu coração ‘stava morto?
Pois agora está queimando
por uma donzela branca,
a quem dedico este canto.

Sob o céu sujo de maio
caminhamos pelo parque
Ela tem os pés descalços;
eu, olhos calmos e livres.
(Tudo o que oferece a carne,
eu bem sei, é perecível.

Todavia, se me impedem
de extrair algum desfrute
de tudo o que não consegue,
sobre o rio chamado Tempo,
flutuar, então que luzes
me valerão nesse inverno?)

Sobre a água, o firmamento,
num espelho refletido:
é dizer que, no momento,
estão reunidas as coisas
todas em torno ao caminho
que me convida à sua boca.

(Prometi dar-lhe uma rosa
desenhada no papel:
mal pude fazer as folhas,
e assim mesmo muito feias.
Não me entendo com pincéis,
humilha-me a natureza.)

Onde vai dar a vereda?
Dentro de seus verdes olhos?
Acaso em outro planeta?
Na mais perfeita alegria?
No mais escuro dos poços?
No picadeiro da vida?

Às margens de um novo dia?
Ou talvez de um lago verde,
dentro da tarde tranqüila
onde um assento de pedra
está plantado pra sempre
no canteiro da existência?


ORAÇÃO NOTURNA

Demônios que me perseguis:
dai-me a paz, eu imploro a vós!
Deixai-me a sós, ardendo apenas
à luz de um inocente e brando sol
matinal, bem longe da chama eterna
que reina em meu cotidiano inferno.

Dai-me o capuz de um monge, manto
do Lama tibetano, calma
virginal dos guris brincando.
Sobretudo eternizai estas pernas
que vão surgindo de sob o lençol,
nesta cama, onde amo e choro tanto.


* * *

Para vós, minha pequena estrela,
quis fazer uma canção singela,
livre de compromissos com a rima.
Chega de contar sílabas tônicas,
basta de seguir formas canônicas:
vamos atirar tudo pra cima.

Mas, se na página em branco eu posso
qualquer loucura em nome do vosso
desejo, na vida é complicado.
E fico sem saber como dar
à vida a luz que vejo brilhar
na arte, sem dar nenhum passo errado.

Sem ferir ninguém não é possível
estar todo momento disponível
para a vida que nos atropela.
Por isto é que, como podeis ver,
a tal canção não pude fazer
para vós, minha pequena estrela.


A TOCA

Meu quarto de dormir tem prateleiras
cheias de papéis repletos de sábias
palavras querendo me sufocar,
e já com seu peso desmoronar
o prédio inteiro a fim de se espalharem
pela rua na mais total desordem,
e desaparecerem para sempre
ao sopro do primeiro vendaval.

Em meu quarto de dormir, ou na cela
que me coube por acaso na rua
onde por acaso vim habitar,
tem sempre alguém a sair ou entrar:
gente que vive ainda, por acaso;
ou que morreu há séculos; fantasmas
que pousam nos livros, porta-retratos
e outras sucatas... e dali me espreitam!

Meu quarto de dormir pretende ser
humildemente o universo inteiro,
ou pelo menos o melhor de todos
os mundos possíveis: o mais seguro,
o que é meu. Assim me engana, e creio
por não ter escolha: o mundo inteiro
me engana que é meu. (E um relógio, dia
e noite a mandar-me entrar ou sair...)

Meu quarto de dormir acolhe tudo
o que preciso pra guardar comigo
meu passado. Ainda que pareça
eu nele existir somente em função
de preservar o seu, não é verdade:
eu é que o tenho feito a cada dia.
Meu quarto de dormir, ou minha toca:
terei aprisionado aqui minha alma?


APARTAMENTO

Da janela, sobre a avenida,
a contar ônibus que passam
(— Quase quarenta por minuto!),
lendo os nomes escritos neles...
Saber é possuir, e um dia
descerei para o grande mundo,
para ver tudo mais de perto.

(Mas jamais será a mesma coisa,
pois não poderei reencontrar
a mesma segurança imune
daquela única janela,
único edifício, única
avenida, único dia
totalmente insubstituível.)


* * *

Nosso lar: reservatório
de coisas que desprezamos
tanto, que não nos dignamos
ao trabalho de afastá-las
da nossa vista.

Acostumamo-nos.

Não corremos mais o risco
de sermos surpreendidos
por algum ruído estranho:
tudo é paz, em nossa cela.
Diante da mobília imóvel,
teremos também a alma
imóvel, e saberemos,
com precisão, reagir
a cada estímulo novo.

(— Novo?!)

Porém o medo invadirá
nosso coração precavido,
cada vez que um raio cair,
cada vez que a terra tremer.


REQUIEM PARA UMA CASA

para Nilo Scheid

Será que se dão conta, esses homens,
essa meia dúzia de trabalhadores
surpreendidos na mais banal tarefa
de pôr abaixo outra casa velha?

Seu primitivo dono já é morto,
e encontra-se espalhada sua família
aos ventos, como o pó que agora brilha
ao levantar-se contra o céu de outono.

É fato: sei que são pedras, não gente.
Moléculas, que momentaneamente
na esquina se encontraram, e afinal
no velho caos vão se precipitar.

Em seu lugar já veremos nascer
outro prédio: as marretas apressam
a construção da cidade moderna
que toda província ambiciona ter.

Dirão eles: “Preservar? Mas que importam
baús, cristaleiras, recordações,
amarelados retratos sob grossas
camadas de poeira, nos porões?”

Agarram-se ao presente, mera bolha
de sabão... Entre futuro e passado,
mesmo que um arame tenso no vácuo:
mas estendido entre o quê e qual coisa?


CONFERÊNCIA

Nada que mor(r)e na língua
é estranho à minha poesia:
durmo com a palavra fria,
acordo com a musa nua.

A mim me ocorre somente
jogar palavras pra dentro
do liquidificador.

(Fonéticas fontes semânticas sementes gramáticas gratuitas semióticos sentidos...)

Mas pergunto ao bom modelo:
onde arrumar os pronomes?
(E o que é pior, os leitores?
E a necessária paciência
para escutar dos doutores
as notórias novidades?)

No gordo Aurélio pesquiso
como emitir um juízo
claro, brilhante, conciso.

Qual o nome do léxico
feito idioma oficial,
de poderes proféticos
pra dizer o real?

Língua que veio boiando
d’além-mar, de tempos outros,
náufraga que recolhemos
entre os papéis de Camões...

Plantar e colher o que, afinal,
no “campo designativo da palavra”?

Exposta a língua em postas,
é tarde para estendê-la:
fio entre entendimentos.
E cedo entretanto
para nos entendermos
sem ela.


* * *

É natural que resista
a poesia ao analista,
que atrás de uma qualquer pista
aguça o fio da sua vista.
E à infeliz entrevista
que o desajeitado artista
concedeu ao jornalista
da conhecida revista.

Seja obra de anarquista
que na utopia persista;
ou simplesmente consista
em ócio de economista:
a poesia que é benquista
guia o leitor, qual turista,
sem permitir que desista
antes da total conquista.


SONETÓIDE III

Desperto em meio à noite como alguém que sabe
que não usa impunemente a língua pátria
como fosse um instrumento musical
completamente livre em suas mãos.

E mesmo assim carrego para o leito
papel, caneta, lápis, o que houver
ao meu alcance para me aliviar
de idéias que me entopem o nariz,

artérias, veias, tudo o mais.
Mal, discreto mal que aflige a mente:
quando penso que não há mais noite

e tenho morta sob os pés a vil serpente,
palavras tornam-se completamente estranhas,
e quase nada diz de mim o verso.


* * *

Disse alguém do meu poema: — É triste.
Todo poema é triste, e o poeta.
Ou, quando é feliz, quando é feito um hino
à plenitude, é por um acaso
que em versos o poeta se exprimiu.

Na certa, queria ter ido ao parque
tomar sol, mas era noite.
Ou a uma festa qualquer,
em plena segunda-feira.
Ou à casa de um amigo
que se encontrava em viagem.

Só o verso triste é que pesa,
só a visão de um abismo
quer tornar-se uma palavra
para não se transformar
em segredo insuportável.

Essa dor que não levamos
sem qualquer vergonha ao parque,
que não se permite entrar
em festas, e nem podemos
dissimular entre flores
que levamos ao ser amado.


GLOSANDO PESSOA

Mal percebo o sentimento
Mais adorável do mundo,
E ele se vai, após curto
E belo espaço de tempo.

E eis que me concentro tanto
No breve instante perdido,
Que finalmente me canso,
E cansado então desisto.

Bem depois, quando nem penso
Em coisa nenhuma, sinto
Tornar, pleno, o momento:
Sentir é estar distraído.


MANIFESTO

Fodam-se as palavras umas com as outras,
e deixem a nós, humanos, em paz
com nossas imagens mudas, sem lei:
sons que derivam do corpo e do chão.

Invento a bandeira do animalismo,
que tem no escudo um tigre roxo e mau
cercado de rabanetes e flores,
defronte a uma pantera cor-de-rosa.

Porque, dentre os sons, os mais essenciais
não são elas, tijolos que acomodo
no muro ornamentado em que me estreito:
são gemidos, risos, gritos e arrotos.

Sem falar nos silêncios que espantamos
com um grande esforço, e somente à custa
do entupimento de nossos ouvidos,
e da decadência de nossas vozes.

Mas não me deixem só cuspir no prato,
virar o cocho, após satisfeito
com tê-las feito andar sob meu comando:
é com prazer que as ponho em fila, elas.

E é como um remédio, esta brincadeira
que resulta de uma qualquer vontade,
mas não me embriaga, enquanto possa
afirmar que nada são: as palavras!


POEMA DO MAR DE DENTRO

Para compreender-te: Mar,
signo do desconhecido...
Modo de ser destemido
além da conta, de dar
um passo maior que as pernas;

O terror mais sem sentido
admitir, para poder
rir-se depois a valer:
rir-se como possuído
do Espírito da Floresta.

Andar no fio da navalha,
dando corda à aventura,
sem se render à loucura
— que enfim está presa à malha
da razão que tudo cerca.

Mar, que espreitando em meu ser,
procura em toda criatura
o sopro de Deus, a frescura
do que ainda vai nascer:
isto é o que tu me revelas!


SONETO XIII.a

O roteiro da culpa no coração
dos pecadores é sinuoso e leva
sempre ao desencontro, última estação
de um trem que parte rumo à mais densa treva.

Poucos são os que conhecem bem a estrada
(a maior parte não nota que se move),
a ponto de não viajarem, quando chove,
nem desembarcarem na estação errada.

No itinerário do medo, nesta malha
fina que entre seres humanos se espalha
sem atá-los, segue em frente quem não ama.

E também os que se julgam bons atores
na vida, e fogem de grandes amores
para não perderem a alma numa cama.


RUAS

Fala baixo,
diante destas paredes sujas:
são caiadas de sangue.

Que te façam calar os corpos
esmagados, mãos e braços
no asfalto das ruas estreitas.

Nem queiras lançar tua alma ao vento
num sorriso, que este sofrimento todo
não pede teu sorriso mais franco.

Teus dentes
— Ah, teus dentes brancos!
ficarão cobertos de fuligem.

As paredes, se houver silêncio,
hão de te contar histórias simples,
doloridas, em voz baixa.

Para que procures, de ora em diante,
atrás de cada rosto triste,
o milagre da vida, um sopro impossível.

Ou enlouqueças...


* * *

Se as palavras se esvaziaram,
homem aflito, se não
te impuseste no momento
exato para o sucesso,
põe de lado esta certeza,
e as pragas contra ti mesmo.

Vira a mesa, e recorda
que se cumpre teu destino
sem que o possas compreender.
Deixa de julgar o cosmos
pela lei que te atormenta.
Desnuda-te, ante o caos
que foi e que será sempre
o princípio.


* * *

Enquanto os homens, enforcados
em tiras de pano, discutem
a provável causa da morte
dos peixes, entre um cafezinho
e outro, a registradora,
com zelo de mãe, nos engole,
E mastiga...

Após digeridos,
seremos verdes, chatos, impressos
em letras, números, desenhos, colunas,
legendas, marcas, fotos, selos, carimbos...

Perfeitos.


DA ESTRADA

para André Gide

Busca o homem! E come o teu
próprio cérebro com farinha,
ó sábio. Sobretudo anda,
ao longo da estrada, deixando
tuas razões, os grilhões do teu
Planeta Inferno circular

e vazio.

Porque assim é que deve ser
tua verdadeira vida, homem:
apenas um sopro de lábios
divinos, sem qualquer certeza
para acalmar tua covardia.
Somente o desfrute total
dos loucos dias que te der

o acaso.


* * *

Foi o que aprendi, nestes anos todos,
e reluto — mas logo será tarde —
em dizê-lo: nunca a existência humana
valeu tão pouco. Ou nunca valeu
mais do que hoje, e tolos se enganaram
os que lhe deram alguma importância.
Jamais foi tão difícil — tão porém
necessário — ver alguma alegria
em alguma parte, alguma coisa,
num instante só, num ser vivo ou morto.
Jamais foi tão indiferente aos homens
nascer ou não mais uma vez o sol.
E, por isto, quem sabe, é tão fácil,
gratuito, levantar-se de suas camas
para erguer outro dia sobre areia.

Sussurra-me o fim do dia sua luz cinzenta,
anunciando o fim dos tempos, e não encontro
estilo capaz da grandeza necessária.
A grandeza foge de minha suja mesa,
e eu talvez devesse pintar quadros (a própria
mesa?), me expressar com clareza. Mas quem pode?
Mais que grandeza, o que eu quero é majestade.
Talvez que ante o negro quadro presente (mais
sujo do que a mesa), falte mesmo é vontade.


NÓS, PODRES

Serei igual a ti, monstro,
herói que voa sobre o mundo
em sua mágica gravata.
Afiarei os dentes nas costas
largas da Ãfrica.

Encherei como balões de ar
palavras ocas, e de esgoto
e lixo, boca e pensamento.
Serei pontual, preciso e mau
como um adulto.

Terei a explicação de tudo,
consultando as abotoaduras
do paletó, e terei ódio
de tudo o que não couber nelas.

(Nem por isso irei esquecer
de trocá-las por outras, novas.)
Não terás inveja de mim,
e não terei nojo de ti,
ou vice-e-versa.

E enfim nos abraçaremos,
a nos matarmos mutuamente
no momento exato, ou seja,
quando isto seja lucrativo.


ÃRVORE À BEIRA DO RIO

Ele vinha de muitos lugares
de que ela nunca ouvira falar,
mas desejava muito conhecer.

Como um rio, ele vinha
de longe, e muitas nascentes
o alimentaram.

À margem dele ela cresceu,
como árvore presa ao chão
onde deitara suas raízes.

Mulher, só sabia florir
para quem lhe beijava os pés
e umedecia as entranhas da terra.

Para segui-lo, ela tombaria,
pau morto e podre,
rolando livre até o mar.

Para fixar-se, ele seria poço,
lago de água suja e morna
refletindo inteira sua amada.


SONATA DE SEGUNDA-FEIRA

Em meio ao caos eu tomo assento,
em conforto, e bem no centro
da cela estreita: — Pois, se estou
feliz, que ordem mais eu quero?

Atendo ao tempo, e sou sincero:
os pequenos vários deuses que venero
em torno se plantam. São convivas
do momento. Que harmonia maior

desejaria, ainda que, em redor,
as meras coisas girem? Tanto pior
para elas, pobres tontas irmãs:
— São o mundo! Que paz, ainda?


ORLA

Procuro um lugar
como Deus o criou no sexto dia,
antes de inventar o câncer da natureza.

Procuro as palavras que gravou
a fogo, sobre a pedra, um ser diferente,
agora sentado a meu lado
(o vento atravessa-o).

Quem diz que estou sozinho?
Ando pelas montanhas junto ao mar,
procurando quem procura, como eu,
a praia deserta, o rochedo onde me assento,
a olhar as ondas.

Terei coragem de dizer-lhe: — Irmã(o)...?

Procuro o lugar onde um peixe gigantesco
sairá da água para conversar comigo
sobre os velhos problemas do mundo.

As trilhas íngremes, o mar revolto,
nada temo, exceto não encontrar
minha casa, lá onde a deixei.


* * *

Ah! silêncio de aço e corredores vazios:
há dias que espero acontecer algo de novo
— como jacarandás floridos em dias frios!
Decidido, qual Colombo, a equilibrar um ovo

com a força do pensamento, e um pouco de ajuda
do acaso, de meus amigos, de Pablo Neruda.
E rogo me aponte, na Terra, a musa descalça,
alguma felicidade que não seja falsa

como a sacarose musical americana,
o Jornal Nacional, e essas coisas que eu invento
para encher versos com sílabas. (Ao menos tento
juntar forma e conteúdo, a casca e a banana...)


CIDADEZINHAS

Mosaicos de verde e telhados imóveis.
O vento anima a dança dos eucaliptos.
A chuva faz tudo parecer de vidro.
O sol espanta o povo, e empresta vida
às pedras do calçamento.

Vem a noite, e o som dos bichos acende
medos, desejos e lâmpadas fluorescentes.
O tempo faz crescerem, e leva embora
as crianças. E os homens todos procuram
lugar certo de plantarem uma outra
cidadezinha.


A LOUCA

A louca, além de louca
e pobre, naturalmente
é negra. E, quando passa
no posto de gasolina,
acho que também palhaça

de quantos que ali estão
trabalhando, no domingo,
sem hora extra, sem graça,
vendo passar as meninas
que vão ao supermercado.

A vingança dela, entanto,
é pedir do orelhão
(para um deus ou avião)
que mandem bomba na esquina
para matar toda gente!


PASSAPORTES

O agente da Polícia Federal
que expede documentos de viagem
encontra-se entediado esta manhã.
Talvez por isso mesmo ele debruça
os olhos sobre um verso de Camões.

Na velha escrivaninha então se passam
as doudas aventuras que esta vida
negou-lhe por haver nascido tarde,
ou cedo; ou num país desventurado;
ou que ele mesmo evita, quando pode.

E é justo esse momento de tamanho
encanto, que eu estrago quando chego
querendo renovar meu passaporte.

Só resta a mim voltar daqui dois dias
— é o prazo em que se apronta o documento,
e dar-lhe de presente este poema!


CARANDIRU

São cento e onze cadáveres
alinhados como latas
de sardinha na gôndola
do supermercado.

Quase todos quase-pretos
que nunca mais serão pobres,
redimidos a mordidas
de cães e tiros na nuca.

Enfim salvos da prisão
perpétua em que nasceram
todos, da luta sem fim
pra ser-brasileiro.

Cento o onze deputados,
enquanto isso, negociam
seus votos, almas e sonhos
de algum futuro.

E em cada esquife carregam
algo de nós. — Eu deliro:
num, julgo ver Tiradentes;
noutro vai Pedro Primeiro;

num terceiro, Bonifácio.
Chico Mendes, Guimarães,
Prestes e Simon Bolívar,
José Martí, Che Guevara...

Cada um morrerá um pouco
mais a cada dia destes,
em que um Estado se expresse
em tiros na nuca e dentes
de cães amestrados
(porém comandados
por homens selvagens).

(Pensando bem, os selvagens
de verdade nada ganham
na comparação equívoca.
Esses homens também são
amestrados, a seu modo.)


CANTIGAS DE RODA TÃPICAS DAS ÃNDIAS OCIDENTAIS

I.
Atirei um pau no mato
O mato me devolveu
Menino não fez carvão
Foi de noite, não comeu

Menino que tosse, tosse
Menino, deixa eu sonhar
Sonhar só posso de noite
(Será fumaça ou luar?)

Eu sonhei que no cerrado
Eucalipto tinha não
Dia e noite só chovia
Molhava todo o carvão

(Desculpe, não queria estragar o seu churrasco...)

II.
A foice cortou meu dedo,
e o sangue não era doce.
Tive medo,
ou bem melhor: desespero.
Também tive fome, e raiva.
Muita raiva.

Mas fiquei cortando a cana
até completar a cota
desse dia.
Até que o céu se tingisse
igual à cor de meu sangue
derramado.

Acho que eu queria mesmo
tingir o açúcar, tão branco,
de vermelho.
Açúcar que eu nunca vejo,
que recheia açucareiros,
há mais de trezentos anos.

(Quantos dedos, mãos e braços
de quantos meninos mortos,
em branco açúcar tornados,
já terão alimentado
engenho, fábrica, usina;
finas taças adoçado

com seu sangue?

III.
Primeiro foi meu pai,
segundo meu irmão,
terceiro já não lembro.
A mãe não falou nada:
se falasse, apanhava.
Depois, fugi de casa,
para não virar escrava.

— Ó prostitutazinha,
vamos brincar de amor?
— Brincar não sei que é,
não senhor.

Só sei que, de repente,
estava na avenida,
alugando meu ventre
só pra estrangeiro rico.
(Um ’té me deu presente:
queria me adotar,
levar junto com ele.)

— Ó prostitutazinha,
vamos brincar de amor?
— Amor não sei que é,
não senhor.


* * *

A Jacques Cousteau, ontem falecido

I.
“Jacques Cousteau voltou ao mundo do silêncio”
— Bela frase, com que a família quis
dizer aos miseráveis habitantes
do planeta mais belo do Universo,
a todos eles, seres vivos: PACIÊNCIA!

Milhões de pessoas que não se conhecem
olharão por um momento o horizonte
limpo ou borrascoso de infinitas praias,
adicionando a eles sua própria gota
de água salgada.

Gaivotas e urubus, na dor irmanados,
hoje não disputarão seu alimento,
entre resíduos da pesca artesanal
ou predatória.

Não se verá saltando um só golfinho
à luz do sol, exceto os tristes escravos
que vivem nas piscinas de Miami.

E no Atol de Mururoa, barreiras
de coral irão erguer-se até as nuvens,
tornando-se invencíveis
para os governantes de bombas atômicas.

II.
Ele, que trouxe à superfície o que não
existia: Mundo Novo, o primeiro
a ser criado; Sexto Continente,
onde o caos ainda reina
— ou será nos outros cinco?

Magro e feliz como Dom Quixote,
montado à proa do Calypso,
o capitão Cousteau esgrime imagens
para dentro de nossa sala de visitas.
(Irá o polvo espirrar tinta preta
sobre a toalha de mesa?

Voltará o mundo a ser o mesmo
depois de suas viagens?
Poderei nadar no doméstico açude
sem temer criaturas outrora ocultas
sob a superfície, e que hoje parecem
tão naturais à imaginação,
depois de realizadas por sua lente?

Foi-se em paz, ou desespero,
para sempre, nesse último mergulho?
Com a fronte iluminada de um santo
que simplesmente fez-se ao mar?
Ou lamentando a estupidez dos homens?

Ou voltará,
como o índio de Caetano Veloso,
“depois de exterminada a última nação indígena”
com a poderosa arma química extraída
pelos japoneses
do fígado da última baleia azul?


REQUIEM III

Celebro, com vagar soturno,
o meu modesto ritual noturno,
costume maldito pelo gentio,
e que piamente chamam doentio
os doutores, para meu sossego:
vai-se a culpa, qual morcego
expulso do quarto mais escuro
da casa. E já não procuro
a saída, enquanto acredito
que outrém pode ficar aflito
com a dor que tento lhe explicar
em palavras que julgo dominar.

Celebro a morte, como tantos
outros a vida sem encantos,
e não sei se escolho, a cada dia,
ou se fui marcado pela fria
mão de quem talvez me espera
do outro lado. Quem dera
bastasse este mundo a minhÂ’alma
perfeita, e eu tivesse a calma
de aprender de pouco em pouco
o que me cabe. Mas feito louco
pretendi logo igualar Deus,
ou ao menos compreender os atos seus.

Celebro comigo a tradição
que eu mesmo invento, sem multidão
que me siga, sem transmiti-la
a ninguém, sem poder feri-la
por não tolerar, neste instante,
leis que me impeçam de avante
seguir, ou leis que me obriguem
a tal. Celebro o único bem
derradeiro a que farei jus
com certeza, e mesmo aos urubus
que me devorem será negado
penetrarem no que me foi guardado.

Celebro meu destino certo,
que vai chegando mais e mais perto,
sem receio de encontrar a chama
do inferno, sem garantias de fama
póstuma, porque não espero
que o nada seja maior que zero,
que é igual àquilo que mereço:
nem mais, nem menos do que o preço
que todo ser humano admite
pagar pela vida, quer grite
ou esperneie, quer aceite mansamente;
quer se mate, quer se enfrente.


* * *

Bebê-la, a vida, em grandes goles:
cada um me atiça e acalma a sede.

Bebê-la até o fim, sempre mais depressa,
para que o fim, enquanto se aproxima,
mostrando pouco a pouco seu contorno,
vá deixando de ser desconhecido.

Morte, velha amiga, ao pressentir
tua gelada companhia é que a vida
com mais esforço grita em meus ouvidos.


BLACK-OUT

Minha poesia entrou em colapso,
às duas da tarde. Minha caneta
se recusa a continuar escrevendo,
em protesto contra a frivolidade
do que eu, irresponsável, inventava:
versinhos de pouco gosto e sem alma.

Black-out geral em minha consciência!
Anuncio aos quatro ventos, previno
a todos enquanto é tempo: alguma
coisa irá acontecer. Ninguém dá bola.
Meu coração se esgota pelo imenso
esforço de me erguer toda manhã.

Joguei ao fogo bobagens guardadas
na pasta com o rótulo: poemas.
Não sei, nem pretendo saber agora
o que sejam poemas, o que seja
a vida, o que seja ser eu mesmo
ou um outro qualquer eu, diferente.

Não quero saber mais nada!


* * *

Fiquei só.
E nem digo: “outra vez”.
Já nasci assim.

Fiquei só com meus poemas,
a geladeira quase vazia,
uma coleção de livros
e outra de amores.

Meu último grito,
que tinha como objetivo
estabelecer alguma
definitiva comunicação
entre seres humanos,
ficou pairando
no espaço infinito
que se estende
entre a minha janela...

e a tua.


O SUICIDA FRACASSA

Paro,
penso sobre o parapeito da ponte.

Abro,
rasgo a camisa e,
o peito arfando, discurso
sobre os males de mim-mesmo,
voltado a vida toda sobre
minha imagem refletida n’água.

Volto,
miro águas passadas
que atrás se lançam, sempre,
sem volta.

Encaro,
mordo a superfície fria da lâmina,
que me reflete fria como a face
que se precipita nela.

Podia haver rima,
mas não haveria solução.

Então eu nado...


APOCALÃPTICO

Quando os deuses desceram à terra,
no ano de dois mil e trezentos, aproximadamente,
houve quem dissesse que procuravam os bons e os justos.

Isto é falso, pois estava escrito
que eleitos seriam os desesperados:
os devedores insolventes dos bancos internacionais,
os índios desfigurados em seus blue-jeans,
os insones cheiradores de cocaína,
os papeleiros da madrugada,
os comedores de lixo,
os mendigos que dormem à porta das catedrais,
os presidiários amotinados,
os descendentes de Hiroshima e Nagasaki,
os que sobreviveram em Chernobyl, no Vietnam,
os terroristas latino-americanos,
os orgulhosos negros da Ãfrica do Sul,
os honestos filósofos do mundo inteiro,
os famintos da Etiópia,
os loucos abandonados nos manicômios,
os que jogaram sua televisão pela janela,
e há tempo deixaram de ler jornais,
e os fantasmas dos que se suicidaram.

A todos foi dada uma última missão,
cujo cumprimento lhes daria o reino dos céus:
espalhar seu desespero entre todos os homens,
revelando as mentiras ocultas
na bondade dos bons, na justiça dos justos,
aqueles que dormem seu sono tranqüilo,
sem sonhos nem pesadelos.


PEQUENA HISTÓRIA DO HOMEM

Deus
nasceu
e morreu.
Já a Prometeu,
pouco se lhe deu:
roubou fogo dos céus
para aquecer os seus.
Queimou os véus.
E o papel,
quem leu?
Eu.


20/12/1998

 

 


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