Poesias Publicadas
De "Nenhum Amor Igual ao Meu" (Patuá, 2019)
Fim da história
legÃtimo signo egÃpcio
e a marca do fabricante
comunicam lado a lado
na tampa do porta-malas:
o contexto já morreu.
reforma-se o mausoléu
de lênin sob os auspÃcios
da microsoft e da shell.
Adeus aos grandes comÃcios.
Adeus che! Adeus fidel!
bush combate o terrorismo
com as armas mais incrÃveis,
enquanto eu só necessito
de um bom pedaço de bife
e pra viver, um motivo.
supremo lÃder bufão,
herói sagrado do rock,
delÃrio da multidão:
o saldo é sempre um estoque
de lixo ou corpos no chão.
e enquanto o carro desliza
suavemente estrada afora,
olho as pessoas – tão lindas!
que amanhã estarão mortas:
então escolho a alegria.
* * *
Soneto XXXI
Bem tolo, amor, é quem te compra em drágeas
ou, ainda pior, dulcÃssima emulsão,
pensando que és, amor, a cura mágica
do humano mal, divina salvação.
Ingênuo, amor, é quem pretende
permanecer distante, estar a salvo,
seguir dietas, evitar ambientes
insalubres, manter-se vacinado.
Que coisa eu posso amar, senão o enigma,
que quanto mais me é estranho, mais fascina?
Que posso amar, senão o enigma e nada
além, buscar no outro o que me falta,
sabendo nele amar o imprevisÃvel,
amor que a nós faz cada vez mais livres?
* * *
Cerrado
Luz de alvorada,
Serena paira a voz,
presença clara.
Desmaia a tarde.
Teus olhos bailam
entre a fumaça e a amplidão,
onde minha alma embarca.
Já noite alta, eu perco a graça.
Por mais que pese
cada palavra,
a frase exata falha.
Sou nau pirata, que vaga
na madrugada.
Não há sinal de calma.
A chuva caia, compartilhada:
os olhos rasos d´água:
são as migalhas que terei do mar.
* * *
Manguezal
Sexta-feira
Cai a noite
Lama negra
No horizonte
Lua cheia
De janeiro
Vai nascendo
Urubus no vento
Sobre o manguezal vermelho
Cidade dos caranguejos
O fumo negro da usina
Comendo a cana, comendo.
Areia preta na praia
Sobre a branca faz desenhos
Cais de pedra
Sem conserto
Ãgua lenta
Rio que escorre
Prisioneiro
O menino magro
Vem sorrindo à toa
Tarde boa
Peixe farto
Rede cheia
O menino preto
Desce a correnteza
Pão na mesa
Bom de remo
Vai vivendo.
* * *
Lição
Receber água das valas
mais sujas ou das piscinas
azuis, sem diferenciá-las:
é isso que o mar ensina.
Rodear igualmente a lata
de cerveja ou a menina
que nada cheia de graça:
isso também ele ensina.
A gota que se destaca
só por um instante brilha
como que em luz transmutada,
mas pouco do brilho fica
quando volta a ser só água
do mar, que a lição ensina.
Rugir pela madrugada,
assustando as avenidas,
de manhã voltar à calma:
eis o que o mar ensina.
Não oferecer nada
além da horizontal linha
a quem procura na praia
aquilo que o mar ensina.
10/08/2019