Poesias Publicadas
De "Os Tons de Tudo" (Bestiário, 2023)
Soneto 47 (Das Mãos)
Com minhas mãos de homem faço tudo:
preparo e lavo a louça do jantar,
dirijo um ônibus lotado e empurro
a cadeira de rodas de meu pai.
Com as mesmas mãos, de habilidades poucas,
anoto ideias pra depois lembrar,
recolho o lixo, ou visto um avental,
para transformar meu trabalho em coisas.
E ainda que pareçam, junto às tuas,
as minhas mãos sem jeito, ou mesmo brutas,
extraem um carinho do cansaço.
Em troca, podes bem me dar um abraço,
que é bem melhor que o mÃsero salário
que minhas mãos não poderão guardar.
(2/6/2019 - 8/6/2022)
* * *
Memento mori
"Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie." (W. Benjamin, 1940)
Ao Sul do Sul, virou rotina
a desgraça: há sempre o luto
e os que sequer são dele dignos.
Há sempre um cadáver em cena:
casas de osso, carne, nervos;
corpos de pedra, cal e telhas.
Na história interrompida,
já não sabemos lembrar,
nem podemos esquecer.
(Ouvi dizer que os Ianomâmi
nos chamam, apropriadamente,
?povo do esquecimento?.)
Se o inimigo vencer,
vai reescrever o passado
e nem os mortos estarão a salvo.
Seu plano é plantar desertos,
estéreis de coisas e ideias
o solo assim como as mentes.
Mas os vivos, estes podem
ainda escolher.
(4/10/2019 - Abr. 2022)
* * *
Um balde
Quantas horas tarda
para encher um balde
com boas risadas
e o prazer da carne?
Pequenas maldades
que a gente carrega:
quanto tempo levam
para encher um balde?
Que tempo, calculas,
leva para encher
um balde de agruras?
Até o fim do mês?
Quanta coisa pode
caber nesse balde?
Tudo que te importe?
Nada que te escape?
Que tempo é preciso
para transbordar
um balde de raiva
que a pessoa guarda
no sótão da casa;
detrás de um sorriso,
quando vai à praia;
ou noutro lugar?
É capaz a gente
de esvaziar um balde
suave e lentamente,
sem fazer alarde,
como hera que escale
vertical parede?
Ou só num rompante,
de forma violenta,
qual cadente estrela
que a noite riscasse,
pra nos dar coragem
de virar a mesa?
* * *
23/09/2023